Avançar para o conteúdo principal

Ruínas com Memórias – O lagar do Soito

A encosta que trepa aos cocurutos da serra é rica, muito rica.

O pinheiral alapa-se na boa terra da serra baldia, contorna pedaços de cultivo arrancados às entranhas das valeiras, cavados pelas águas frias e turbulentas das ribeiras. O casario de xisto do Soito, arruinado pelos remendos modernaços do cimento, abre os janelos ao Senhor da Serra, catam o sol.

A aldeia vai acordando, estica os braços doridos à frialdade dos finais de Novembro. O galaró da Ti Fina, que tinha a mania que as galava todas, cantava roucamente, mostrava quem mandava por ali! A manhã estava muito azul, muito limpa, salpicada por um sol frio e invernoso. Os mais novos, muito remelados e com grossos bigodes do café de cevada, saíam de casa embrulhados nuns trapos muito remendados. Engadanhados, assopravam as mãozitas geladas para afastar o frio.

O caminho seguia lado a lado com o muro de pedra que dava para o quintal da Ti Alda e despejava para a terra dos Amorins. A erva mostrava já as pontas queimadas. A geada chegara cedo, logo após o S. Miguel. Mais acima, nas territas arrendadas, as oliveiras mostravam a sua folhagem fina salpicada pelo negro brilhante das azeitonas. A mãe Dulce já por lá andava ainda a manhã vinha em casa de Deus. Esbofada, varejava com garra as azeitonas que caíam redondas, sem um ai, no panal já muito remendado.

A fogueira, alimentada pela ramada que tombava das oliveiras, aquecia as mãos dos mais novos, que tremiam ao “Deus dará”.

Lá mais abaixo, nas Regadas, o fumo branco que abraçava o olival, esfumava-se para os lados do Passal, purificava a bela igreja matriz, com as suas cantarias avermelhadas em arenito de Alveite. Por aí andara, em tempos, o historiador Alexandre Herculano, acompanhado por Vicente Ferrer Neto Paiva, que dera aulas em Coimbra ao Eça de Queiroz.

No Outeiro, a nortada dobrava o pinheiral que deitava para a casa do Ti Joaquim “barbeiro” e da Ti Maria da Luz. Boa gente!

No olival havia um grande silêncio, só quebrado pela chiadeira do carro de bois do Ti Albino Duarte, que passava mais abaixo, carregado de azeitona para o lagar dos Baetas.

Fazia-se o rebusco. A geada aleijava as mãos delicadas das crianças, criava grossas frieiras. As negras e roliças azeitonas tamborilavam no fundo do balde, amontoavam-se numa fresquidão que arrepiava. A mãe pede aos mais novos para correrem ao lagar. Precisava de azeite para o almoço. Batatas cozidas e um arremedo de bacalhau. O dinheiro era mais escasso que “estrelas com rabo”, mal chegava para a mercearia do Zé Carvalho, com o livrito dos fiados a engordar.

Os rapazolas, mais alegres que bando de pintarroxos, correm pelo caminho que atravessa o Soito. A Ti Derlinda, que tratava os catraios a corpo de rei, debruçada sobre o molho de couves novadias tagarelava com o Ti Zé da Avó. O correspondente do Trevim, um homem inteligente e culto, seduzia com o seu sotaque abrasileirado.

Mais à frente, o senhor Baeta, um homem de muito boa estopa, com o cigarrito ao canto dos beiços e a tossicar, palrava com o feitor da Ribeira. Entravam na adega da casa grande que se embrulhava em bons traços senhoriais. A casa de agricultor rico rendia para cima de cem medidas de milho, meia pipa de azeite e alguns almudes de bom vinho.

Junto à fonte de S. Pedro, com o seu bebedouro para cavalgaduras, o Ti António Cristo, um velho esgalgado e rijo, todo ossos, com um carão moreno de olhos miudinhos, barafustava com a mulher, esbracejava muito. Uma pálida claridade mostrava-se no janelo do Zé Mendes. Barruntou-se logo que estavam de atalaia.

Na quelha que dá para o lagar mostrava-se o chão ainda coberto por um manto branco. A garotada perdia-se no escorreganço na fina e fria geada. Era uma festa de trambolhões e nódoas negras.

O mais novo, com a face remelosa, escapa-se para o quintalzito que encosta ao lagar de azeite e estava de renda à Dulce.

Catava, avidamente, os silvestres e muito doces morangos que por aí ainda vadiavam. Um bando de pombas, que branqueava o telhado do lagar, assustado, reboa para os lados da Demigalha.

Os manos adoram o murmúrio da água, o chiar da roda e a sombra recolhida das grandes árvores. Um local edílico, delicioso, onde se apanham algumas enguias com folha de aboboreira.

O lagar dos Baetas aconchega-se junto à ribeira que bebe o nome ao lugar. As águas ganham vida ao fundo do Lombo do Castro, na encruzilhada das duas ribeiras, um lugar de bruxas e beatas que por aí se ataviavam. A roda de madeira gira pausadamente, dá vida ao ofício. Uma nogueira enorme, quase nua, abraça o tugúrio do azeite. Os filhos da Dulce empurram, a medo, a grossa porta. Um calorzinho bom, amigo, acarinha-lhes as faces geladas.

E ali, no reino do bom azeite, parecia magnífico o mestre Abílio, o melhor criador do “oiro” daquelas bandas, um azeite de três assobios! O homem, sobre o solo térreo, tossicando ao cheiro acre do azeite e das emanações das borras, berrava com os ajudantes:

– Mexam-se seus animais que os garotos precisam do azeite para o almoço!

A massa da azeitona, triturada pelas grossas rodas de granito, geme espremida nas seiras fumegantes. A água e o azeite não se suportam. Como dizia o homem, nascido no Fiscal, para quem lhe aturava as manias, “o azeite do lagar dos Baetas e a verdade vêm sempre ao de cima! Os invejosos diziam à “boca cheia”, atiravam-lhe às bochechas, que o mestre era um artista, que tinha o seu “poço do ladrão”. Mas o Ti Abílio, que já tinha comido muito pão com côdea, encolhe os ombros, ignora “essas línguas saburrosas”.

Os mais novos, em silêncio e com as mãozitas nos bolsos, olhavam gulosamente para a porta da caldeira. Quatro postas de bacalhau, soberbas, de um louro apetitoso, acariciadas por um magnífico “braseal”, atormentavam no borralho. Preparava-se a tibornada à moda do Soito!

 

José Avelino Gonçalves

Tags: Crónica | Opinião
Autor: Jornal Trevim

0 Comentários

    Deixe um comentário

    O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Meteorologia

Artigos relacionados

Trevim: Leia também FIGURAS POPULARES – Lucinda Ventura: uma poetisa e assumida lousanense… Opinião
31 Out 2024 12:01 AM

  Hoje, a nossa viagem virtual pelos apeadeiros históricos da nossa terra concentra-se no lugar de Casal de Ermio, onde esta excelente representante da prosa e da poesia viveu, mais concretamente a partir de 1981, quando beirava os 35 anos...

Ler artigo
Trevim: Leia também Psicologia aplicada pode preparar jovens para um mundo melhor Opinião
19 Set 2024 08:39 AM

Os desafios atuais nesta matéria estão relacionados com a saúde mental que os jovens enfrentam hoje, com um aumento significativo de ansiedade e depressão. O uso extensivo das redes sociais e a pressão para se destacarem académica e profissionalmente contribuem...

Ler artigo
Trevim: Leia também Homenagem Rui Fernandes – Uma figura importante da Lousã Opinião
22 Ago 2024 09:33 AM

  Lucília Salgado Há pessoas que tiveram uma tal vida que não merecem que tenhamos pena delas, quando nos deixam definitivamente. Por mim, não consigo! O Rui Fernandes, com quem não tinha grande intimidade, era para mim uma figura importante...

Ler artigo
Trevim: Leia também Homenagem Rui Fernandes – Enorme perspicácia a resolver problemas Opinião
22 Ago 2024 09:31 AM

José Redondo Perdi um dos meus melhores amigos, Rui Cunha Simões Fernandes, com quem mantive um convívio quase diário ao longo de mais de 50 anos. Homem de um extraordinário humor e um crítico acérrimo de tudo o que dizia...

Ler artigo
Trevim: Leia também Homenagem a Rui Fernandes – O ‘Solnado Lousanense’ Opinião
22 Ago 2024 09:28 AM

  Carlos Ramalheiro Acolhe-o hoje o tecto do mundo. Conservam-se, porém, os sentimentos de um passado longínquo, onde a nossa terra era aquela Lousã em que todos se conheciam e estimavam. Nascido em Vale da Velha, em 1945, mudou-se ainda...

Ler artigo
Trevim: Leia também Ainda a propósito de Camões… Opinião
27 Jun 2024 09:01 AM

  [caption id="attachment_19244" align="alignnone" width="256"] Filomena Martins[/caption]   Camões! Obra eterna, vida transcendente, mostrando o homem perante o infortúnio, sedento de amor, de sensibilidade subtil, criatividade divina, joguete da pouca sorte, ávido de reconhecimento e justiça! Português intemporal, nome grande...

Ler artigo
Definições de Cookies

A TREVIM pode utilizar cookies para memorizar os seus dados de início de sessão, recolher estatísticas para otimizar a funcionalidade do site e para realizar ações de marketing com base nos seus interesses.

Estes cookies são essenciais para fornecer serviços disponíveis no nosso site e permitir que possa usar determinados recursos no nosso site.
Estes cookies são usados ​​para fornecer uma experiência mais personalizada no nosso site e para lembrar as escolhas que faz ao usar o nosso site.
Estes cookies são usados ​​para coletar informações para analisar o tráfego no nosso site e entender como é que os visitantes estão a usar o nosso site.

Cookies estritamente necessários Estes cookies são essenciais para fornecer serviços disponíveis no nosso site e permitir que possa usar determinados recursos no nosso site. Sem estes cookies, não podemos fornecer certos serviços no nosso site.

Cookies de funcionalidade Estes cookies são usados ​​para fornecer uma experiência mais personalizada no nosso site e para lembrar as escolhas que faz ao usar o nosso site. Por exemplo, podemos usar cookies de funcionalidade para se lembrar das suas preferências de idioma e/ ou os seus detalhes de login.

Cookies de medição e desempenho Estes cookies são usados ​​para coletar informações para analisar o tráfego no nosso site e entender como é que os visitantes estão a usar o nosso site. Por exemplo, estes cookies podem medir fatores como o tempo despendido no site ou as páginas visitadas, isto vai permitir entender como podemos melhorar o nosso site para os utilizadores. As informações coletadas por meio destes cookies de medição e desempenho não identificam nenhum visitante individual.