Há 62 anos, a Lousã serviu de cenário a um filme de 18 minutos caído entretanto no esquecimento. Recentemente regressou à luz do dia, fruto da sua digitalização pela Cinemateca Portuguesa. “O Caminho do Rebanho”, o documentário assinado por Armando Silva Brandão, dá a conhecer – já com todas as cores – o castelo de Arouce, a Senhora da Piedade e algumas aldeias serranas. O Trevim falou com duas das atrizes desta fita resgatada ao passado e que retrata uma Lousã que já não existe.
Domingo, manhã de primavera. É uma Lousã rural que se desvenda aos nossos olhos, com os seus campos cultivados e retalhados. Vê-se o Candal, mas também uma vacaria em Vale de Aires. Uma aldeã trajada de preto, talvez a Maria do Loureiro, manuseia com mestria o queijo que há de ser vendido lá mais abaixo na vila. Adelino Henriques, 82 anos, era criança quando o documentário foi rodado e lembra que a queijeira terá recebido vinte escudos pela sua participação no filme. Há ainda uma rapariga que faz tranças a outra sentada nos degraus de uma escada de xisto. No fundo, é o bucolismo que convém mostrar.
Pouco depois, surge José, a conduzir o seu rebanho e a tocar gaita-de-beiços. Atrás dele e de uma jovem (Adelino Henriques diz tratar-se de Albertina Barreto), a capela de Nossa Senhora das Preces, no Catarredor. É “nesta aldeia perdida na Serra da Lousã”, conforme relata o locutor Raul Feio, que vemos ainda os cortiços tapados com lajes de xisto, mas também há planos da estrada das Hortas, da fonte das Ferreiras, do Vaqueirinho e do Chiqueiro com os currais cobertos de colmo. Vemos ainda a eira do Candal e a sua monumental escadaria, sem esquecer a azenha movida pelas águas da ribeira de São João (onde está agora a Casa da Natureza), a que se segue o plano de uma rapariga caminhando ao lado de um burro com sacos de farinha no lombo. O filme serve ainda de pretexto para que a locutora Isabel Wolmar conte uma versão da Lenda da Princesa Peralta e do Rei Arunce.
As meninas do Externato
Uma cena põe cobro a toda esta pacatez: junto ao castelo, chega um autocarro. Dele desce um grupo de raparigas vindas, supostamente, do rebuliço citadino. Veem-se Manuela Redondo, irmã do empresário José Redondo, e as irmãs Amélia e Carmo, filhas de Manuel Mexia, na altura, presidente da Câmara Municipal da Lousã (CML). Duas delas destacam-se e vão ter com o pastor que, sozinho, brinca ao pião, no Largo de São Paio, atrás do castelo.
As jovens são Júlia Carranca e Madalena Baeta, com quem o Trevim falou. A primeira é filha dos proprietários da antiga Pensão Carranca e recorda-se do dia em que o realizador apareceu no Externato Santo António, juntamente com o diretor de fotografia. “O Silva Brandão e o Abel Escoto perguntaram a alguém da CML onde poderiam encontrar atores para o filme e lá apareceram na escola”, rememora Júlia Carranca que, passados mais de 60 anos, nunca mais pensou neste documentário, nem nunca falou dele com a família mais próxima, o que diz muito “da pouca importância” que teve na sua vida.
Feito o casting (na altura, falava-se ainda em audição), as duas raparigas, na altura com 14/15 anos, foram as eleitas, tendo a Câmara Municipal disponibilizado um jipe para levá-las para as filmagens daquilo que terá sido uma encomenda feita pela Comissão de Turismo da Lousã ao Fundo do Cinema Nacional.
Júlia Carranca lembra-se do dia de estreia. “Não foi um grande cerimonial”, mas “houve um grande alarido na vila”, além de ter havido “uma sessão grátis” no Cine-Império da Lousã. Madalena Baeta, a outra rapariga do documentário, tem memória de o filme ter sido apresentado no Salão Nobre, com a presença da equipa de filmagem, do elenco e dos respetivos pais.
A experiência do teatro amador
Mas esta não foi a primeira vez que as duas jovens representaram. Na verdade, as duas já tinham feito teatro amador. “O Povo da Lousã”, datado de 18 de fevereiro de 1956, dá conta de um espetáculo, no Cine-Império da Lousã, composto de duas peças. “A Lição da Capucinha” e “O Tal Sr. Progresso”, ambas escritas por Maria José Borges de Figueiredo Pereira, contaram, no seu elenco, com a participação de, entre outras, Júlia Carranca e Madalena Baeta. Na época, as duas jovens estavam longe de imaginar que, pouco depois, iriam protagonizar “O Caminho do Rebanho”.
Júlia Carranca disse ao Trevim sempre ter gostado de fazer teatro na escola, enquanto aluna e, mais tarde, na qualidade de docente. Aos 19 anos, porque “era irreverente” e queria conhecer o mundo, saiu da Lousã e foi para os Estados Unidos da América. De volta a Portugal, casou-se em Lisboa, para só voltar à Lousã de visita aos pais.
Madalena Baeta, por sua vez, prosseguiu os estudos, mas não esmoreceu o gosto pela representação, já que montou um grupo de teatro de fantoches, além de ter ingressado no Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra, participando em peças de Gil Vicente, Molière e Frederico García Lorca. Confidencia que fez “muitas coisas, estudando quase até se aposentar”. Licenciou-se em Biologia, foi diretora de Faculdade em Moçambique e foi amiga íntima de Maria de Lourdes Pintassilgo, única mulher a chefiar um governo em Portugal. Madalena Baeta foi ainda deputada municipal pela CDU, em Torres Vedras. À semelhança da sua parceira no filme de 1959, também ela deixou a Lousã quando se formou, regressando apenas para visitar a família.
Quanto à identidade do pastor, Madalena Baeta é a única a apontar uma pista: “creio que era sobrinho da professora Guiomar, que lecionava francês no Externato de Santo António. Fica o retrato do menino, com a esperança de que os leitores possam ajudar a encontrar o José que hoje andará na casa dos 70 anos. A história não fica por aqui.
Carlos Sêco
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