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Há 111 anos Serpins teve ocupação militar pela defesa do direito ao Baldio do Sobral

Os terrenos baldios sempre constituíam outrora uma importante condição de sobrevivência para as pessoas dos meios rurais. Era de lá que retiravam a lenha para se aquecerem e poderem cozinhar, os matos para os animais curtirem e adubarem as terras e onde tinham as pastagens para o gado. Estes terrenos comunitários, de usufruição comum, nem públicos nem privados, eram essenciais à sua subsistência.

Foram e são ainda normalmente constituídos por enormes áreas com grandes potencialidades, pelo que sempre despertaram a cobiça de entidades que, sobrepondo o seu interesse ao das populações, muitas vezes lhe retiraram os meios de sobrevivência, obrigando-as a uma vida ainda mais miserável e mesmo à emigração.

Serpins tinha e ainda tem uma considerável área de terrenos baldios, superior a 1000 hectares. Contudo, quando perdeu a condição de concelho, em 1836, alguns desses baldios, os mais ricos, foram então apropriados pela Câmara da Lousã, apesar de Serpins sempre ter contestado os vários processos que levaram a essa decisão, alguns pouco claros e bem controversos. 

Em 1909 a Câmara decidiu propor a entrega da gestão desses baldios aos serviços florestais para procederem à sua arborização massiva, distribuindo depois os proventos entre as duas entidades. A decisão do governo foi publicada a 7 de setembro, sendo feita à revelia dos procedimentos que a lei exigia e contestada por muitos serpinenses, incluindo o professor Adriano José de Carvalho, ilustre defensor dos baldios de Serpins.

Se por um lado a florestação daquela imensa área  parecia uma coisa boa, para as pessoas humildes, os compartes daquele tempo, era algo que mexia com o seu modo de vida e a possibilidade de se manterem no local onde habitavam, afetando mesmo a sua sobrevivência.  Os povos tinham plena consciência que os resultados das plantações não seriam para eles ou para os filhos, ou netos, mas para os grandes senhores e entidades que iriam explorar o mais possível esses terrenos que tanta falta lhe faziam.

Foi assim que nos finais de setembro de 1909 se gerou um grande descontentamento a nível local, sobretudo no que respeita à matado Sobral, depois de se saber da passagem deste e de outros baldios para o regime florestal, e das consequências que isso traria para os compartes.  Não obstante a garantia de serem ouvidos e dos seus interesses serem acautelados, tais promessas nunca foram cumpridas. A recolha da lenha passava a ser limitada ou teria de ser comprada, as pastagens eram proibidas e a roça de matos condicionada.

Daí para a frente foi o desenrolar de um conjunto de proibições que sobressaltaram os povos que utilizavam aquele baldio. Receosos de ficarem sem os matos, sem as lenhas e sem a possibilidade de apascentar os rebanhos, combinaram aparecer em grande número no Sobral para roçar matos e cortar lenha, determinados a defenderem o que era seu.

Câmara requisitou a tropa para impor o regime florestal

 No dia 27 de setembro, uma segunda feira, o regente e os guardas florestais que o acompanhavam observaram a chegada de um grande grupo de pessoas ao baldio do Sobral, munidos de roçadoiras e cordas, e resolveram comunicar à Câmara o que se estava a passar. Esta não perdeu tempo e no mesmo dia requisitou uma força militar. No dia seguinte, 28 de setembro, pelas 6:30, desembarcavam na Lousã 40 praças de Infantaria 23 e pouco depois chegava a Cavalaria.

Já no terreno baldio a tropa procurou impedir o trabalho dos populares, que prosseguia com determinação. “Ocupando a vanguarda o elemento feminino, opunha-se tenazmente gritando ´isto é nosso! Isto é nosso! `, enquanto os militares procuravam desfazer os seus molhos de mato”, conforme relata Adriano José de Carvalho, no seu livro “O Regime Florestal em Serpins”, editado em 1911 pela Imprensa da Universidade, já depois de implantada a República.

Mandaram então vir mais forças militares de Coimbra, mas também de Leiria e de Aveiro, deixando de ser um caso local para ser nacional, com grande repercussão em jornais diários que na época se publicavam em Lisboa.  A situação levou ao envio de vários telegramas ao rei, pela Junta da Paróquia (antes de existir a Junta da Freguesia) e outras entidades, nomeadamente o serpinense Adriano de Carvalho. Procurava-se alertar o monarca para os atos que estavam a ser praticados sobre as populações, incluindo os ferimentos e as prisões feitas, entre as quais a de uma pobre viúva com filhos. Justificava-se que o povo apenas reivindicava o direito a usufruir dos baldios, como era uso e costume até aquela altura.

As forças militares estiveram em Serpins cerca de uma semana, e foi por ordem do rei que se começaram a retirar, ficando apenas 14 praças. Estávamos a 5 de outubro, e a calma estava finalmente de regresso ao baldio do Sobral. Há que salientar, contudo, que quando da limpeza dos terrenos para as novas plantações, nem um só serpinense, homem mulher ou criança, colaborou nesse trabalho ainda que fosse pago quase o dobro do que era normal naquele tempo.

Outros tempos, outros negócios

Mas a história dos baldios de Serpins não fica por aqui. Nos finais da década de sessenta do século passado, novamente os terrenos comunitários foram cobiçados. Neste caso tratou-se dos baldios paroquiais que ainda atualmente se encontram arrendados a empresas de celulose para produção de eucaliptos. A Câmara da Lousã e grandes negociantes procuraram fazer negócio com eles e foi então lançado um processo de providências cautelares, que terminou dando razão aos que defendiam a causa de Serpins.

Nesta data histórica em que decorrem 111 anos sobre a ocupação do baldio do Sobral pelas forças militares, em que o povo defendeu com determinação os baldios de Serpins e os seus direitos, todos os serpinense lhe deviam prestar a devida homenagem. Em especial aqueles que atualmente  se dizem seus gestores mas que nada fazem para preservar a sua história,  cumprir a lei que os rege e chamar à participação todos os compartes para melhor gerir em democracia aquilo que é de todos. Este é um património que faz parte da identidade do povo de Serpins e que devemos preservar contra os interesses, cobiças, abusos, desleixo ou simples má gestão. A história não nos perdoará se o não fizermos.

José Manuel Sequeira

Tags: 1440 | Baldios
Autor: Jornal Trevim

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